quarta-feira, 20 de abril de 2011

iNVENÇÃO DO MUNDO

INVENÇÃO DO MUNDO
RICARDO LOPES







Prefácio

Quisera eu escrever tão claro que,
quando eu escrevesse rosa, lesses rosa.
E, ao leres, lesse e visse o viço e
ouvisse o soar do cor-de-rosa.
Como se colorisse a rosa escrita
e gritasse a palavra colorida.

Só assim a escrita rosa será rosa,
como uma coisa é uma coisa é uma coisa.
E a palavra palavra, em verso e rosa,
qual Deus é Deus. Deus é o que é e
uma rosa é uma rosa é uma rosa.

Canto I. De Deus

I
Deus é tudo o que é exterior.
A terra, o sol, o céu, o mar.
O rio que corre,
a flor que floresce,
a pedra no meio do caminho...

O vento que sopra
e o que não sopra também.

Aquela nuvem que passa,
aquele homem que passa,
aquele carro que passa...
Ih, passou!

Deus também é eu,
embora eu não seja Deus.
E o coração de Deus é tão grande quanto o mundo.

Mas tudo o que é exterior é interior
e o que é interior exterior.
Deus é o dentro e o fora.
Ou, para Deus, não há dentro ou fora.
Deus simplesmente é.
E o resto é nada.
Mas Deus também é nada.
E o resto é Deus.

II
Deus criando o mundo:
mais parece uma criança com os seus brinquedos.
Quando quer que uma coisa seja outra,
não precisa nem dizer,
é só pensar,
e uma coisa será outra.

Se quer que haja luz,
luz haverá.
- Faça-se luz, diz Deus,
ligando o interruptor com um cabo de vassoura,
essa “mão invisível”
para alcançar mais alto.

Com a massinha de moldar,
Deus faz o primeiro homem.
Mexe, remexe...
Mas, depois de refletir um pouco,
amassa tudo e inventa um´outra coisa.

Faz seu mundo à sua imagem e semelhança,
até enjoar e largar ele de lado.

- De-eus, Deus!
Maria está chamando pra papar!

III
E agora Deus?
O mundo que criaste,
a vida que me deu.
Deu no que deu.
Gostaste? Não eu!

A costela que me quebraste,
a mulher que me deu.
Deu?! Não deu.
Por que não me abandonaste,
foi falta de adeus?

A crença que me inculcaste,
Deus, não Deus?
A culpa que me deu.
O pecado que inventaste,
perdão, mas não fui eu!

A água que transformaste
em vinho, quem bebeu?
O pão que tu me deste,
comeste, não eu.

E agora Deus?
E agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você ao menos
tocasse a valsa vienense...
Eu não queria,
mas esse Deus me deixa comovido como o diabo!

IV
Deus não é a terra,
o sol, o céu ou o mar.
Senão Deus se chamaria terra
e sol e céu e mar.
E Deus se chama Deus.

Não é a flor que floresce,
o vento que sopra
ou a pedra no meio do caminho.
Senão, Ele também se chamaria
flor, vento e pedra no meio do caminho.
Tudo ao mesmo tempo.

Mas Deus não se chama nada disso.
Deus se chama Deus.
Pelo menos é assim que todo mundo o chama,

As coisas todas passam,
Deus não passa.
Deus também não é eu,
Logo eu também não posso querer ser Deus.

Deus não tem coração,
porque Ele não é uma pessoa.
Ou, pelo menos, não é uma pessoa como a gente.
Deus é como se fosse todo coração,
mas só como se fosse.
Porque um coração é um coração
e Deus é Deus.

E o que é exterior é exterior,
e o que é interior interior.
Se o que é exterior fosse interior
ou o que é interior exterior,
só existiria uma palavra para chamar o que é interior e o que é exterior.
Mas há uma palavra para o que é exterior e uma palavra para o que é interior,
assim como há uma palavra para cada coisa que existe.
Inclusive Deus.

V
Perto de você,
nada mais existe.
Nem mesmo Deus
que, se a visse, nada teria criado.
Ou se envergonharia do que fez.

E, ao te ver,
não acreditaria.
E se converteria.

VI
Não querendo mais viver, pedi licença
a Deus, pra ele deixar que eu partisse.
Que eu fosse encontrá-Lo, onde estivesse,
já que Ele não estava onde eu estava.

Mas de onde Ele estava, antes que eu o visse,
Deus disse para que eu aqui ficasse.
Pois, se eu não estava onde Ele estava,
Ele estava onde eu estava.

E, se acaso eu fosse até Ele,
Ele não estaria mais comigo.
Pois se Ele estava onde eu estava,
eu só estava onde Ele não estava.

VII
Meu Pai? Disseram que se chamava Deus,
mas esse nome, para mim, nunca me significou nada.
Às vezes grito: “Deus, Deus!” – mas não me vem ninguém.

Nunca foi possível que Deus sequer me abandonasse
porque nunca soube o que era estar em companhia,
nem de Deus nem de ninguém.
Logo, nunca soube o que era estar só ou o que era amar.
E, no entanto, sem essa companhia, eu não passo de um ser abandonado.
E o que resta é alguém vagando a esmo, de lugar nenhum para lugar nenhum.
Sem saber de si, de nada, dos outros, quê outros?

Canto uma canção como se orasse,
oro como se cantasse uma canção.
E, no final das contas, não oro nem canto nada.
Às vezes chamo por um outro nome que não o de Deus,
mas também não me vem ninguém.
E choro por nada, como um recém-nascido abandonado pela mãe,
como que para pedir por algo que não sei o que é,
mas do qual necessito urgentemente.
E me vem um cansaço de quem se esforçou muito, muito, muito!
E me vem um sono profundo...

A coisa que eu mais gosto é de poder dormir um sono profundo.
Com sonhos, mas de uns sonhos dos quais eu só me esqueço,
ficando apenas uma sensação de quem sonhou sem saber com o quê,
ou de quem sequer sabe que sonhou.

Assim como se eu tivesse visto Deus sem saber que vi,
Ou estado com meu Pai sem saber que tive.

VIII
Deus disse: faça luz!
E a luz se fez.
Mas fora uma luz tão negra, mas tão negra
que o mundo continuou tão escuro quanto antes.

X
Se Deus quisesse que nós o conhecêssemos,
porque não apareceria Ele a nós como um de nós?
Ou como Ele é, fosse homem, mulher, pedra ou animal?

Mas Deus apareceu a nós como um de nós.
E nós não o reconhecemos.

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